terça-feira, 3 de setembro de 2013

Feijão Tropeiro

Hoje é dia de feijão tropeiro!



Grão Maravilha
Descoberto absolutamente por acaso, o feijão carioca é o preferidos de 85% dos brasileiros
Por Walterson Sardenberg Sº // Fotos Reinaldo Mandacaru
www.revistagosto.uol.com.br

Há cariocas notórios, com todos aqueles maneirismos no sotaque, embora nascidos em São Paulo. Para citar apenas três: o escritor Nelson Motta, o produtor de shows Luís Carlos Miele e o rei da noite Ricardo Amaral. Descobrir esta procedência pode causar sobressaltos em muita gente, mas nem tão intensos quanto saber que, apesar do nome, o feijão carioca - de longe, o mais consumido no Brasil, dono de quase 85% do mercado - é tão paulista quanto uma partida entre XV de Jaú e XV de Piracicaba. Outra surpresa: há 40 anos, o carioquinha, como também ficou conhecido, ainda estava, digamos, no juvenil. Nem sequer sentava-se no banco da equipe titular, onde figuravam, na época, o jalo, o preto, o roxinho e o mulatinho - todos batendo um bolão.
As raízes do feijão carioca, integrante da ampla família Phaseolus vulgaris, originária das Américas, estão na zona rural de Ibirarema. Este lugarejo de 6 mil viventes fica nos confins do oeste de São Paulo, a 400 quilômetros da capital. Foi ali que, em 1964, o fazendeiro Waldimir Coronado Antunes, então com 27 anos - e nas horas vagas, jogador de basquete da seleção de Assis, a maior cidade das redondezas -, deparou-se com grãos de feijão de aparência estranha, em meio à plantação de outra variedade, o chumbinho. Formado em agronomia quatro anos antes, Antunes matou a charada: era uma mutação acidental - hoje, ele chama de "transgênico natural". As causas? "Pode ter sido até uma faísca elétrica que mudou o cromossomo da variedade", avalia. Conversando com os lavradores da fazenda, a Bom Retiro, Antunes descobriu que aquele feijão de textura listrada crescia com incomparável facilidade. "Era uma planta bem maior e mais forte, imune a doenças de vírus", lembra o fazendeiro, aos 74 anos, ainda na sua Ibirarema, onde sempre morou por duas vezes foi prefeito.
Tomado pela curiosidade, Antunes levou um punhado de grãos para a mulher, Zezé, cozinhar. O resultado foi um feijão de cheiro aliciante e caldo consistente. Quem provava, aprovava. "Doei sementes para vários fazendeiros da região e todos tiveram a melhor reação", recorda. Sagaz, o jovem fazendeiro selecionou um saco de 30 quilos e o fez chegar ao Instituto Agronômico de Campinas, por intermédio de outro engenheiro agrônomo, Jacob Tosello, que viajava para visitar um irmão. Era o endereço ideal. Antunes relembra: "Vi que, se tivesse a chancela do Agronômico, o grão ia ser um sucesso. Como realmente foi."
O instituto, também conhecido por Iacê - da sigla IAC -, então um braço da Secretaria de Agricultura e Abastecimento do Estado de São Paulo, é uma glória da pesquisa agrícola no país. Foi fundado para aprofundar os estudos do café ainda em 1887, por iniciativa de D. Pedro II, dois anos antes de o imperador ser destronado. Os grãos enviados pelo fazendeiro de Ibirarema entraram oficialmente no Agronômico em 1º de agosto de 1966, já com o batismo de feijão carioca, nome escolhido por Antunes.
Embora tenha sido divulgado que esse batismo provenha de um porco de pele riscada criado na fazenda Bom Retiro, ou das listas das calçadas de Copacabana, semelhantes (com alguma boa vontade) às do feijão, o motivo é mais prosaico. Na época, trabalhavam em Ibirarema muitos lavradores vindos de Nova Friburgo, na Serra Fluminense. Vários deles tinham sardas no rosto, por descenderem de suíços-alemães e somarem à esta herança genética a exposição diária da pele alva aos efeitos do sol dos trópicos. Um desses migrantes, em especial, era o mais sardento: um lavrador apelidado de Carioca. "Por associação, chamávamos de carioca tudo o que tinha aparência pintada e rajada", recorda Antunes, agora arrependido do batismo gaiato. Fosse hoje, daria outro nome. "Feijão Antunes seria bem melhor", brinca. "Quem sabe eu teria ficado rico? Agora essas descobertas na agronomia rendem royalties."
Dentro do IAC, os estudos sobre o feijão carioca ficaram a cargo de outro agrônomo jovem e entusiasmado, Luiz D?Artagnan de Almeida. Começavam as centenas de pesquisas nas duas safras (tanto na seca quanto nas cheias), que comprovariam as qualidades da variedade. Além da resistência às pragas, o carioca era mais produtivo (simplesmente o dobro...) e permitia um cozimento muito mais rápido. Seu problema era a aparência. Naqueles tempos, as variedades de feijão bem cotadas nas bolsas de cereais tinham uma cor única. Os atacadistas não queriam saber dos rajados. Foi preciso que o Banco do Brasil, por meio da carteira de crédito agrícola, intercedesse, dando preferência de financiamento a produtores que optassem pelo plantio do carioca.
O consumidor foi menos reticente. Lançado no mercado em 1971, cinco anos depois o carioca tinha lugar cativo no time e rivalizava com os campeões. Pouco mais tarde, era o preferido do país, um craque consumado e versátil, pronto para ser utilizado nas mais variadas receitas - o chef Vagner Carlos, no restaurante Beco do Bartô, em São Paulo, acredita que seja o ideal para o tutu. Mesmo assim, o carioca treinou muito, passando por melhorias genéticas.
Em 1998, a Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária) colocou à disposição dos agricultores o cultivar - esta é a palavra técnica para a variante de um determinado feijão - Pérola, com grãos maiores, que se tornaram os prediletos do consumidor exigente. O IAC, por sua vez, continuou os estudos. No ano passado, lançou o Formoso. "Além de um grão bem graúdo, este cultivar tem 20% a mais de proteínas", afirma Alisson Chiorato, pesquisador do Agronômico. "Outra de suas qualidades é a longevidade. Com 40 dias após a colheita, fica pronto em 20 minutos na panela de pressão. Com um ano, precisará de apenas mais 10 minutos no fogo." O mais recente lançamento do IAC é de meses atrás. Chama-se Imperador. "Para o consumidor, não muda muito", diz Chiorato. "As diferenças são uma planta mais ereta, e, portanto, mais adequada para a colheita mecanizada, e, ainda, um ciclo de crescimento com duas semanas a menos."
O Brasil produz de 3,5 milhões a 4 milhões de toneladas de feijão por ano. Quase tudo para consumo próprio, embora, como é próprio dos craques, o feijão carioca já atice a cobiça do exterior. Além de exportado para alguns países da América Latina, vem sendo estudado por uma doas principais organizações de melhoramento genético deste grão, o Centro Internacional de Agricultura Tropical (Ciat) de Cáli, na Colômbia.
Cientistas da entidade consideram o carioquinha uma das mais importantes descobertas alimentares do século passado, embora, como seria natural, façam confusão com o nome. A palavra carioca os remete a gente bronzeada. Nada a ver com aquele lavrador de ascendência germânica e repleto de sardas. Se contarem a esses pesquisadores que, no Rio de Janeiro, o feijão carioca é quase sempre preterido em favor do feijão preto, ficarão desconcertados de vez. Um estarrecimento similar ao dos próprios cariocas se soubessem que boa parte do feijão preto que consumiram este ano veio... da China.

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